Convergências e divergências entre a lexicografia e a terminografia[1]

Jean-Claude Boulanger

1. A lexicografia e a terminografia

Enquanto instrumento lingüístico, o dicionário levou vários séculos para emergir dos trabalhos de compilação dos monges nas abadias e nos mosteiros. Primeiramente, foi necessário passar pela glossografia (estabelecimento de glosas interlineares e/ou marginais nos manuscritos, em um primeiro momento em latim; em um vernáculo europeu, num segundo; em seguida foi a confecção de glossários tendo o latim como língua de partida e um vernáculo como língua de chegada), depois, pela lexicografia do latim medieval, seguida pela lexicografia bilíngüe e multilíngüe, com o latim como língua que recebe explicação, dada por uma língua européia. Somente no século XVI a lexicografia se estabelecerá em obras chamadas de dicionários —a partir de Robert Etienne (1539)— e se poderá falar de lexicografia científica, cujo interesse essencial é a explicação funcional das palavras. Antes de Robert Etienne, a protolexicografia procurava explicar os termos por razões teológicas, filosóficas, etc. Não havia objetivo lingüístico propriamente dito. Com Jean Nicot, às vésperas do século XVII, assistir-se-á às primeiras tentativas de elaboração dos dicionários monolíngües fundados sobre princípios científicos, em todo caso, com repertórios nos quais o francês tinha a prioridade sobre o latim. Nicot será o iniciador dos fundamentos microestruturais da lexicografia francesa. Aliás, seria mais apropriado dizer que foi ele quem os estabeleceu e os sistematizou. No fim do século XVII, sob os auspícios de diferentes personalidades físicas e jurídicas, o dicionário conquista um lugar oficial e toma-se um gênero no conjunto da produção escrita. A célebre trindade composta por César-Pierre Richelet (1680), por Antoine Furetière (1690) e pela Academia Francesa (1694) se estabelece como um ponto de referência incontomável na história dos dicionários franceses.

No século XVIII o dicionário se diversificou como produto e assumiu um lugar preponderante no equipamento lingüístico dos falantes. Instituiu-se como sistema, ao mesmo tempo no plano científico, distinguindo entre a palavra e a coisa (A Enciclopédia), e no plano de sua realização industrial, pela produção maciça de repertórios. A lexicografia começou então a se estruturar cada vez melhor a fim de responder às necessidades lexicais da população e, para além dessas primeiras necessidades, a responder às interrogações extralingüísticas que originarão as enciclopédias tais como as conhecemos hoje, em particular, graças às publicações Larousse, a partir de 1835 aproximadamente.

Desde a época dos Filósofos passou-se a dar grande atenção à explosão das ciências e das técnicas —as artes— que anunciam a era moderna. A rapidez da Revolução Industrial e sua abertura para o mundo inteiro desencadearam simultaneamente a multiplicação dos contatos entre línguas no intuito de comunicar os novos conhecimentos aos outros grupos lingüísticos e, igualmente, de aprender com eles.

Estes fenômenos colocaram a terminologia em evidência e prepararam uma distinção entre a informação relativa à língua geral (as palavras e seu(s) sentido(s)), a que é relativa aos tecnoletos (os termos e os conceitos) e a que diz respeito à enciclopédia (os seres e as coisas). Compreendendo que, quando se fala de comparação, é necessário ver nisso ao mesmo tempo a busca de convergências e a manifestação de dessemelhanças, isto é, de finalidades comuns e de finalidades específicas. Faremos nossas constatações sobre a língua geral (LG) e sobre as línguas de especialidade (LSP), abandonando por enquanto a enciclopédia. As convergências e as distinções entre a lexicologia e a terminologia estarão, pois, presentes em filigrana nas análises, no momento da comparação de certos elementos que caracterizam a lexicografia e a terminografia. Convencionar-se-á que a lexicografia se ocupa das palavras da língua corrente, ao passo que a terminografia se detém sobre os termos das esferas temáticas do saber.

1.1 As hipóteses

1. Desde já, estabeleço como primeira hipótese que a lexicografia e a terminologia descritiva ou terminografia dependem da dicionarística, que são componentes da teoria e da prática dos dicionários. A dicionarística é a disciplina da lingüística que engloba tudo o que se relaciona à elaboração dos dicionários de todos os gêneros, tanto gerais quanto especializados, especiais como lingüísticos, etc. Ela é delimitada pela gramática e pela enciclopédia e pelas obras de referência (um catálogo telefônico ou um livro de receitas não são dicionários). Entre os dois pólos da atividade descritiva das palavras - o dicionário - e das coisas —a enciclopédia—, encontra-se o dicionário enciclopédico (ver o Grand dictionnaire encyclopédique Larousse, que é o exemplo típico da obra híbrida para o francês; o Petit Larousse illustré é da mesma ordem, mas seu estatuto é tão particular na dicionarística que ele permanece, de fato, inclassificável).

Estando relacionadas a uma mesma estrutura modeladora, possuindo, pois, alguma coisa em comum, a lexicografia e a terminografia reivindicam, entretanto, uma espécie de independência uma em relação à outra. Isto quer dizer que do ponto de vista dos princípios e dos métodos, possuem cada uma suas especificidades.

Surge então uma primeira questão: pode-se fazer lexicografia sem fazer terminologia e/ou, pode-se fazer terminologia sem fazer lexicografia? Estabelecendo, previamente, que se pode fazer terminologia monolíngüe.

Antes da resposta à pergunta, é necessário resolver um pequeno problema de terminologia lingüística e definir três termos chaves no campo do dicionário.

Segundo esta escala, pode-se fazer lexicografia sem fazer terminografia, mas a lexicografia geral não pode se abster dos termos, ou seja, de uma reflexão sobre a terminologia —no sentido de “vocabulário temático, especializado ou tecnoletal” - e podemos fazer terminografia sem fazer lexicografia. O terminógrafo não se detém no emprego dos termos no discurso quotidiano dos não-profissionais, ou seja, nas unidades terminológicas que o lexicógrafo comenta em um dicionário de língua, sob o ângulo de seu funcionamento lingüístico.

2. Levanto como segunda hipótese que, entre a lexicografia da língua usual e a lexicografia especializada, não existe neste momento um caminho intermediário. Até hoje poucos pesquisadores se detiveram, efetivamente, em aprofundar o assunto a fim de saber se existia uma ou mais diferenças entre a lexicografia especializada e a terminologia (terminografia) (ver Bergenholtz e Tarp 1995: 10-11; e também 28-31). Esta questão poderia ser objeto de discussões posteriores. Mas, no momento, será colocada de lado.

2. As finalidades comuns

A lexicografia e a terminografia repousam ambas sobre atividades análogas, cujas finalidades são, ao mesmo tempo, práticas e didáticas. Elas também são distintas. Com efeito, até recentemente, confundia-se facilmente as duas disciplinas. Mas cada uma possui suas características e seus métodos próprios. A confusão vem, sobretudo, do fato de que os lingüistas generalistas se interessam pouco ou absolutamente nada pela terminologia enquanto domínio de estudo, que eles a consideram como um subsistema da língua geral que não possuiu identidade particular ou fundamentos específicos. Ela não se particulariza, pois, em relação à lexicologia, por exemplo. Sob o ângulo lexicográfico, a confusão provém também do fato de que os dicionários gerais monolíngües (DGM) registram termos técnicos e termos científicos em quantidade relativamente grande. Além disso, em nossos dias, a parcela dos tecnoletos tende a crescer mais nos DGM. Por outro lado, acontece freqüentemente de estas duas atividades serem praticadas pelos mesmos pesquisadores e no âmbito dos mesmos empreendimentos. Confusões nascem também das relações com a enciclopédia.

Detalharemos quatro finalidades comuns:

  1. A lexicografia e a terminografia são duas práticas que tratam da pesquisa, coleta, tratamento e classificação de dados ou de materiais de ordem lexical. Este é o objeto de estudo partilhado, a matéria comum.
  2. A lexicografia e a terminografia efetuam a análise e a descrição destes dados lexicais mais particularmente no plano lingüístico, sendo que o aspecto semântico ocupa aí um lugar preponderante. O termo semântico devendo ser entendido aqui no sentido de “correspondência com alguma coisa”, com um signo lingüístico no primeiro caso (signo=significante+significado), com um conceito ou uma noção no segundo (termo=denominação+noção). Este é o âmbito de pesquisa, o âmbito de análise comum e partilhada.
  3. A lexicografia e a terminografia efetuam a difusão dos resultados das análises sob a forma de obras chamadas dicionários: dicionário de língua (DL) no primeiro caso; dicionário terminológico (DT) no segundo. Os materiais lexicais são aí apresentados em parágrafos denominados artigos, cada um sendo objeto de uma série de esclarecimentos, ou seja, de predicações funcionais e conceituais, respectivamente. Este é o suporte formal similar. Tanto os DL quanto os DT são, certamente, suscetíveis de subdivisão em subtipos. O modelo estrutural de todos os dicionários responde a uma tripla dimensão: a macroestrutura, a microestrutura e a iconoestrutura.
  4. A lexicografia e a terminografia efetuam atualizações regulares dos produtos dicionarísticos, e isto em razão da evolução lingüística e do enriquecimento do vocabulário geral e especializado, inclusive a consideração, de um lado, da evolução tecnocientífica e, de outro, do aumento dos conhecimentos, sem esquecer as reviravoltas sociais que influem no vocabulário. Por outro lado, o desgaste e o desuso lexicais levam ao desaparecimento de palavras. O mesmo acontece com termos que envelhecem depressa (por exemplo, em informática, em eletrônica; a mecânica automobilística se metamorfoseou completamente nos últimos vinte anos). Hoje em dia, a duração de vida de um DGM quase não ultrapassa cinco anos. Em terminologia, isto pode diferir conforme o campo do saber: um dicionário de informática tem vida mais curta do que uma obra sobre filosofia. Esta é a conformidade ao real, o imperativo sincrônico.

Em razão de seu paralelismo, de suas analogias e da semelhança formal de seus produtos dicionarísticos respectivos, a lexicografia e a terminografia são largamente confundidas na consciência coletiva dos indivíduos. As idéias que elas recobrem, assim como aquela de “enciclopédia”, interferem continuamente e é extremamente difícil criar obras puras, não influenciadas pelas práticas vizinhas, particularmente em lexicografia geral. Como prova, o exemplo famoso do Petit Larousse illustré. “Com efeito, existem dicionários enciclopédicos e a enciclopédia alfabética difundida no Ocidente no século XVIII, distingue-se aparentemente pouco do dicionário” (Rey, 1982: 7). Na realidade concreta, dir-se-á que a enciclopédia dá acesso ao real (os seres e as coisas), o dicionário terminológico, às classes conceituais e às classes de objetos do universo, enquanto que os dicionários gerais monolíngües são freqüentemente considerados como instrumentos didáticos que informam sobre a língua e sobre as diferentes facetas de seu funcionamento: regularidades morfológicas e gramaticais, dificuldades, armadilhas do léxico, etc. (ver Rey 1982: 7-8). A história demonstra, entretanto, que não se esperou a criação de dois termos, lexicografia e terminografia, para proceder a descrições de palavras e de termos. As atividades são mais antigas que as denominaç.

3. As divergências fundamentais

Apesar de suas semelhanças e sua aparente fusão em suas finalidades práticas e didáticas, as idéias de “lexicografia” e de “terminografia” não devem ser assimiladas. Existem numerosas oposições entre elas. É na panóplia das predicações articulares ou das rubricas que os métodos se particularizam melhor. A seqüência detalhará as principais divergências.

Antes de empreender a análise comparativa, eis alguns indícios que permitem situar estas duas disciplinas uma em relação à outra.

Tratar-se-á, então, na seqüência, de distinguir duas tentativas de ordem da linguagem. Colocaremos em paralelo as atividades consignadoras. O lugar das LSP nos DGM diz respeito a um outro tipo de abordagem.

As oposições ou as dicotomias são numerosas. Selecionei uma dúzia. Elas não são apresentadas seguindo uma ordem hierarquizada, isto é, elas não vão da mais importante a menos importante [L=lexicografia; T=terminografia.]

3.1. L → a LG / T → as LSP

A lexicografia se ocupa prioritariamente da língua geral, portanto, das palavras do discurso quotidiano, ao passo que a terminografia se interessa pelos tecnoletos ou LSP, portanto, pelos termos que servem para elaborar sistemas hierarquizados de conhecimentos: nomenclaturas, taxionomias, etc. Inúmeras interferências podem ser constatadas entre a LG e as LSP, particularmente da terminografia à lexicografia.

3.2. L → a palavra / T→ o termo

A lexicografia e a terminografia centram seu interesse nos materiais lexicais. O vocabulário considerado por ambas forma um extrato do léxico total disponível em uma língua em um dado momento. As entradas dos DL e as dos DT resultam, pois, de uma seleção, de uma triagem a fim de delimitar conjuntos lexicais. Essa delimitação do léxico geral e do léxico especializado é imposta pelo programa macroestrutural estabelecido para cada tipo de pesquisa.

O subléxico conservado nos DGM é geralmente mais extenso, mais vasto que o de um DT centrado em um único domínio. A seleção lexical é limitada pelo setor de atividade considerado e relacionado no DT, isto é, pelo número de conceitos a denominar, ao passo que as fronteiras de exaustividade não existem para o DL, ao menos teoricamente. O número das palavras é indefinido pois o léxico geral é aberto, enquanto que o número dos termos de um domínio é finito ou quase finito, pois o léxico especializado é fechado.

O fechamento lexicográfico se dá a partir da totalidade conhecida do léxico da língua, enquanto que o fechamento terminográfico se realiza através de um subcódido já reduzido. Em terminografia há, pois, um duplo fechamento do léxico: o do léxico total e o do domínio tratado em relação a todos os outros domínios.

A lexicografia considera todas as unidades lexicais, quer sejam gerais ou especializadas, como palavras, ou seja, signos lingüísticos com dupla faceta (significante + significado) que fazem parte do léxico total de uma língua, e suscetíveis, para alguns, de possuir um caráter polissêmico. Em cada língua existe um número infinito de palavras do qual somente uma pequena parte é captada pelos lexicógrafos e repertoriada pelos DGM. O signo-palavra será considerado por si mesmo e será dele mesmo que todos os dados de um artigo falarão prioritariamente. As palavras são estudadas do ponto de vista de sua funcionalidade morfossemântica. O objetivo fundamental do dicionário geral é propor prioritariamente uma soma de conhecimentos lingüísticos sobre o léxico delimitado.

A terminografia considera o subsistema tecnoletal, ou seja, termos que podem ser chamados de signos-nomeadores ou signos-designadores que servem para reunir um vocabulário específico e unicamente aquele. O signo-termo, que geralmente é monossêmico em um domínio, será considerado em uma relação com conceitos a denominar, a fim de encontrar seus exemplares no mundo. Ele se inscreve em uma perspectiva estruturante, hierarquizante, isto quer dizer que, ao mesmo tempo que fala de si mesmo, é associado a outros, pertencendo ao mesmo campo que ele, e ele deve falar do universo conceptual. Os termos são estudados do ponto de vista de sua funcionalidade léxico-cognitiva. O objetivo fundamental do dicionário especializado é propor prioritariamente uma soma de conhecimentos extralingüísticos sobre o léxico delimitado.

As interferências são numerosas entre as duas abordagens. Se acontece raramente de unidades da língua geral passarem para as terminologias sem mudar de sentido, é usual constatar a presença de unidades tecnoletais na língua quotidiana. Mas, mesmo que termos se introduzam nos DGM, eles são tratados como palavras, e isto porque são descritos primeiramente e antes de tudo, sob seus aspectos funcionais, e a partir de um procedimento semasiológico (ver o ponto 3.5). Nos dicionários de língua, a palavra de entrada é o signo lingüístico saussuriano, enquanto que nos dicionários temáticos o termo de entrada é um signo escolhido para representar um conceito, ele mesmo considerado como um dos elementos de uma estrutura hierarquizada. Se a ocasião se apresentar, o signo escolhido como chave de acesso pode ser acompanhado de seus sinônimos na rubrica ENTRADA, o que não poderia ser o caso em um dicionário de língua, o sinônimo possuindo sua própria entrada, salvo quando se trata de uma variante menor e morfológica.

A transição das LSP aos DG não impede algumas piscadelas terminológicas nos enunciados predicativos, notadamente nas definições, sobretudo quando estas são submetidas à opinião dos especialistas.

3.3. L → extensão / T→ intensão

Os DGM visam à explicação da totalidade funcional das palavras de uma língua. O lexicógrafo se empenha em fornecer ao consulente todas as informações úteis para produzir discursos na mesma língua, e isto de maneira recursiva e indefinida, o que significa duas coisas:

  1. O dicionário deve, pois, consignar, reunir e descrever palavras de todas as partes do discurso, tanto as palavras gramaticais (palavras instrumentos: preposições, conjunções, determinantes, pronomes, etc.) quanto as palavras “lexicais” (as palavras livres comuns —simples, compostas, complexas— as infra-palavras —os morfemas formadores, os elementos de formação greco-latinos— e as supra-palavras —as seqüências frásicas: locuções, expressões, provérbios, fraseologismos, etc.). As unidades lexicais simples fornam o essencial das entradas de um DGM. De outro modo, acontece nos artigos em que é a unidade lexical complexa (ULC) que domina a paisagem (ver NPR, artigo operação, sentido 4 e 6).
  2. O dicionário deve fornecer o máximo de informações funcionais sobre cada palavra: grafia, pronúncia, categoria léxico-gramatical, sentido, etc. São os diferentes enunciados predicativos articulares.

Diremos que o dicionário geral considera a extensão funcional da língua, que ele oferece possibilidades de uma decodificação lingüística extensiva ou exaustiva para cada palavra convocada à nomenclatura.

O DT visa à explicação de um conjunto reduzido de designações. O quadro de redução é o da temática do saber selecionada pelo programa, isto é, um fragmento do universo dos conhecimentos. No interior do domínio, este fragmento deve ser o mais exaustivo possível. A ecologia geral do dicionário é reduzida em dois planos:

  1. O dicionário consigna os termos que reivindicam um significado no sentido mais estrito: os substantivos, os adjetivos qualificativos e os verbos são repertoriados prioritariamente. As palavras gramaticais, os morfemas derivacionais e os outros elementos de formação são excluídos; as supra-palavras (locuções, expressões, fraseologismos, etc.) que não possuem o estatuto de unidade lexical complexa são geralmente descartadas, e isto por razões conceituais. Os ULC formam o essencial dos DT.
  2. Esta especialização leva a conceber um texto dicionarístico dominado pelo aspecto semântico (definições conceituais, rede sinonímica), e isto a fim de estabelecer elos hierárquicos estruturados no plano nocional, e pelo aspecto contextual (a citação documental). Algumas outras rubricas articulares se acrescentam regularmente a este esquema microestrutural básico: a categorização léxico-gramatical, um ou mais desenvolvimentos enciclopédicos, indicações sobre o estatuto normativo, aspecto que reveste uma importância capital nas terminologias institucionais. Raramente há outros esclarecimentos funcionais, como a pronúncia e o exemplo, ou relativos aos aspectos históricos, como a etimologia e a datação. As marcas de registro jamais foram estudadas em terminologia.

Diremos que o dicionário terminológico examina a língua em intensão, que ele oferece possibilidades de uma decodificação lingüística seletiva do ponto de vista da funcionalidade de cada signo.

3.4. L → difusão aberta / T → difusão fechada

O DGM corresponde a um programa de difusão aberto. Ele se endereça a todos os usuários de uma língua, e isto no interior de um dado conjunto, o do nível do dicionário: crianças, adolescentes, adultos, público estrangeiro, etc. O público do DG é simultaneamente homogêneo e heterogêneo. Quanto mais o dicionário possui uma vasta nomenclatura, tanto mais seu público se amplia e seu conteúdo se diversifica. Isto se explica pelo fato de que a língua geral é o sistema de comunicação de todos os locutores de uma mesma língua. Ela reflete todos os aspectos da vida em sociedade, inclusive alguns aspectos dos tecnoletos.

Em comparação, o DT tem uma difusão mais limitada. Ele se endereça a um grupo alvo de usuários interessados em um subcódigo especializado da língua, ou seja, uma esfera do saber total, à exclusão de todas as outras com as quais o consulente não tem afinidades. Teoricamente, e sob este ângulo, o público do DT é sempre homogêneo. Quer seja especialista ou não, o locutor que se interessa por um dicionário das ciências matemáticas o faz por uma razão ligada às LSP, isto é, a um domínio do conhecimento de especialistas.

3.5. L → a semasiologia / T → a onomasiologia

A lexicografia privilegia uma conduta de análise que se apóia sobre a semasiologia. Esta é o estudo do signo com o objetivo de determinar qual(s) conceito(s) corresponde(m) a ele(s). Em outras palavras, a semasiologia parte da palavra para buscar suas diferentes significações. A abordagem é, pois, lexical.

Exemplos de análise semasiológica

O que significa a palavra operação?

O NPR enumera 6 significações principais:

O que significa a palavra escritório?[2]

O NPR enumera 8 significações principais reagrupadas em dois grandes campos:

A terminografia privilegia uma conduta de análise que se apóia sobre a onomasiologia. Esta é o estudo do conceito com o objetivo de determinar qual(s) signo(s) corresponde(m) a ele(s). Em outras palavras, a onomasiologia parte do conceito, da idéia, para buscar o ou os diferentes signos lingüísticos (termos) que o exprimem. A abordagem é, pois, semântica. Esses signos terminológicos são distribuídos em dois eixos: o eixo substitutivo dos sinônimos (=mesma idéia), o eixo distributivo da rede conceptual (=os diferentes termos de uma rede de idéias).

Exemplos de análise onomasiológica

Quais são os termos que servem para designar “os habitantes dos Estados Unidos”?

O artigo americano do NPR dá a série dos seguintes sinônimos:

Esse exemplo ilustra o primeiro eixo que é paradigmático e que se refere à substituição das unidades. O campo semântico é dominado pelo aspecto lexical (o significante) no qual se observa uma distribuição por exclusão ou subtração e variações de registros.

Quais são os termos que servem para denominar “as diferentes frutas cítricas”?

O artigo cítrico do NPR dá a série de termos seguintes:

Esse exemplo ilustra o segundo eixo que é sintagmático e que se refere a uma possível enumeração de unidades. O campo semântico é dominado pelo aspecto lexical (o significante) no qual observamos uma distribuição por inclusão ou adição e uma construção hiponímica em relação ao hiperônimo cítrico.

3.6. L → a polissemia ou a inclusão / T → a homonímia ou a exclusão

Como a lexicografia reúne e descreve as unidades lexicais de toda natureza necessárias ao funcionamento da língua natural, ela apresenta sucessivamente os sentidos de cada unidade conservada na entrada de um dicionário. A conduta semasiológica integra a polissemia (ver os exemplos de escritório e operação no NPR).

Na verdade, a língua geral, objeto das atenções do lexicógrafo, privilegia a multiplicação dos sentidos. Durante o estabelecimento das definições, o dicionarista procede ao agrupamento de todas as significações (sentidos e subsentidos) para uma mesma palavra. Ele opera por inclusão. Certamente, existem palavras que não se conformam a esta característica. Essas exceções dizem respeito à monossemia e à homonímia. Além do mais, os sentidos que não correspondem ao programa do dicionário, notadamente em razão do público alvo determinado, são evidentemente descartados.

Como a terminografia reúne e descreve, ao mesmo tempo, as unidades-termos próprias a um único domínio, concebe-se que ela descarta os domínios e as significações que não são pertinentes ao objeto temático do dicionário planificado. Por exemplo, um dicionário das ciências matemáticas descartará os sentidos 1, 2, 4, 5, e 6 da entrada opération [operação] do NPR. Somente o sentido 2 figurará nos planos do terminógrafo. Esta conduta seletiva se explica facilmente. O terminógrafo que avalia o artigo operação já citado, verá ali dois blocos: o bloco LG (sentidos 1 e 2) e o bloco LSP (sentidos 3, 4, 5 e 6). Isto significa que para o terminólogo existe 1 palavra operação, que é polissêmica, pois ela possui dois sentidos e 4 termos operação, cada um sendo monossêmico. Os 4 termos serão considerados como sendo homônimos. A conduta consiste em reter um conceito e em rejeitar os outros, começando por descartar os sentidos gerais, se for o caso. Quando o terminógrafo considera o termo operação, ele opera por exclusão. O procedimento tem duas conseqüências: a homonimização e a monossemização.

Além disso, sucedendo o caso em que, em um domínio, um termo possa se ver consignar significações diferentes, o terminógrafo procederá a uma nova subdivisão por homonímia. Ele tentará redigir tantos artigos distintos e autônomos quantos haverá de sentidos repertoriados, ou melhor, de subdomínios. Assim, o sentido 6 da palavra operação do NPR, ao qual atribuímos a marca de domínio “finanças”, ver-se-á reclassificar desta maneira:

EntradasDomínios
1. operaçãoBolsa de valores
2. operaçãoComércio
3. operaçãoBanco
4. operaçãoImobiliário

A homonímia lexicográfica deve, pois, ser distinguida da homonímia terminográfica. A primeira repousa sobre critérios propriamente lingüísticos: etimologia, gramática (gênero, categoria

lexical...), semântica, etc.; enquanto que a segunda é fundada sobre considerações classificatórias no interior de um sistema de conceitos hierarquizados.

3.7. L → a diacronia e a sincronia / T → a sincronia

O DGM apresenta as unidades em sua dupla dimensão sincrônica e diacrônica (ver as diferentes rubricas), enquanto que os DT não repertoriam senão unidades que têm um uso efetivo em uma comunidade de sócio-profissionais.

Eis alguns exemplos tirados do NPR:

Um DT não conservaria o sentido 1 de cabaré e, sem dúvida, descartaria as outras duas palavras, a menos que evocasse seu uso antigo ou arcaico, e assim, fizesse observações enciclopédicas com um caráter histórico. A terminologia procura delimitar um conteúdo conceptual conotado por uma situação atualizada, isto é, uma situação de comunicação ligada ao momento presente ou a uma dada sincronia. O termo se integra em uma rede equilibrada, hierarquizada e funcional. Assim, a palavra aeroplano não tem mais seu lugar em uma estrutura classificadora concernente a avião moderno. A unidade hidrargírio seria objeto de um comentário enciclopédico.

3.8. L → a lexicalização / T → a terminologização

O lexicógrafo seleciona somente as unidades cuja lexicalização, ou seja, a utilização generalizada é demonstrada (forma e/ou sentido). As unidades de discurso ou as que estão prestes a se estabelecerem no uso não são repertoriadas (ver cyclo-tourisme [ciclo-turismo]), a não ser que haja exemplos de emprego lingüístico. A neologia penetra muito lentamente nos dicionários (Diskman e e-mail não estão no NPR, nem no PLI 1997). Com relação à neologia, o papel da lexicografia é estático, passivo, observador (ver courriel e mél [correio eletrônico]; considerando a recente recomendação das comissões de terminologia francesas, o termo mél deveria logo ser consignado nos dicionários).

O terminógrafo conserva todos os termos terminologizados, os em via de sê-lo ou neológicos. Se for preciso, ele os cria, o que é totalmente proibido ao lexicógrafo. Três razões explicam isto:

  1. A estrutura de funcionamento onomasiológico do DT exige esse tipo de comportamento acerca da consignação. Em uma rede conceptual tecnoletal, não pode haver lacuna lexical do ponto de vista da consignação. Cada noção deve ser munida de uma denominação.
  2. A normalização (ver parágrafo 3. 10.).
  3. Nos DT, não há entrada que tenha o estatuto de unidade lexical completa. Isto significa que normalmente os afixos e os proprionymes[3] são descartados das nomenclaturas.

O lexicógrafo é um observador do uso, não intervém para organizá-lo, salvo se seu dicionário for muito normativo. Logo, ele fará julgamentos sobre as palavras (ver a decisão da Academia francesa que em junho de 1996 propôs a grafia cédérom ao invés do empréstimo CD-ROM, abrindo assim as portas para a criação de derivados como *cédéromiser, *cédéromisation...). Exercendo um papel dinâmico frente à neologia, a terminologia permite organizar a língua. Quanto à lexicografia, é raramente dinâmica,. Ela é antes estática, e neste sentido se isola na descrição dos usos que avalia, muitas vezes, sobre bases prescritivas.

3.9. L → o exemplo e a citação / T → o contexto

Assim que o lexicógrafo elaborar suas definições, ele as completa ou as sustenta e as ilustra com a ajuda de exemplos. Esses enunciados são fabricados (os exemplos construídos), tirados de textos escritos (as citações literárias ou documentárias), ou tirados de textos orais (canções, rádio, televisão, filmes). Nos DGM, os exemplos forjados dominam largamente o sistema literário ou documentário, ou seja, a citação. Também é curioso constatar que mesmo os empregos tecnoletais são majoritariamente marcados por extratos de textos literários, mais do que por fontes textuais científicas.

Por sua vez, o terminólogo procede à identificação das características conceituais: natureza, fim, função, matéria, etc., de modo a sintetizar os conhecimentos a respeito de um conceito. A definição terminológica é completada por contextos, essencialmente escritos, fragmentos de textos mais ou menos longos. O contexto é atualizador, pois veicula informações que completam a definição e que permitem associar uma denominação (significante) e um conceito (significado). As LSP não estão ainda realmente abertas aos exemplos fabricados, nem aos conceitos orais. Os contextos referenciados dominam largamente todas as outras formas de ilustração de emprego.

3.10. L → a norma / T → a normalização

O DGM é o reflexo de uma norma social e cultural, logo, de uma norma observada e que é matizada, refletida, entre outras, pelas balizas das marcas de uso. Os registros do uso identificam níveis e circunstâncias de emprego em relação a uma clientela estabelecida antes da confecção do dicionário.

Nos DT, a normalização é um ato de intervenção planificado e refletido que visa à eficácia da comunicação e à intercompreensão em meio sócio-profisssional. Não há o objetivo de estratificar a linguagem, mas antes o de precisar, de distinguir, de propor um modelo único, a fim de facilitar os contatos e a comunicação. Daí a tendência em querer eliminar a qualquer preço a sinonímia e as tentativas para proceder à criação, depois à oficialização de termos novos. O objetivo da normalização é também o de corrigir os usos problemáticos, ou que se dizem problemáticos, a fim de melhorar as trocas da linguagem. Daí os pareceres de normalização ou de recomendação, igualmente, sobre os termos já em uso. As obras especializadas são, então, obrigadas a dar conta das proposições oficiais, o que o DGM não é obrigado a fazer. Assim, a presença e a normalização de logiciel e matériel nos DGM não impedem sotfware e hardware de terem ali seu lugar, porque estes empréstimos ainda estão em uso, ou são conhecidos. O NPR e o PLI 1997 consignam as quatro unidades; enquanto que os dois empréstimos quase desapareceram dos DT. O que não quer dizer que desapareceram do uso. Por outro lado, a normalização terminológica nem sempre reduz as unidades especializadas à univocidade. Assim, no Québec e na França, vários conceitos têm denominações duplamente normalizadas: courriel [Q], mél [F]. A uniformização se instaura em cada território. Mas para o conjunto da língua francesa, observa-se regularmente uma variação cuja causa se deve à normalização. Assim, contrariamente ao seu objetivo, que é o de reduzir as escolhas, uma operação de normalização pode ocasionar a multiplicação dos termos.

3.11. L → a palavra simples e a palavra composta / T → o termo complexo

Em lexicografia, as entradas de dicionário são largamente dominadas pelas unidades simples e compostas. Estes dois grupos sozinhos formam aproximadamente 99% das nomenclaturas (ver Boulanger, 1989a e 1989b). Os ULC são recuperados em subentradas ou no corpo dos artigos, graças a mecanismos diversos: exemplos, quase-definições, etc. (ver os artigos bureau [escritório] e opération [operação] do NPR).

Em terminografia, as entradas de dicionário são largamente dominadas pelos ULC. Elas podem atingir facilmente 80% a 85% das nomenclaturas.

A razão principal dessa diferença repousa sobre o fato de que a palavra lexicográfica é dada como um signo lingüístico, enquanto que o termo é dado como representante de uma noção, o que faz com que o lexicógrafo veja três palavras em agência de viagens ou em sinal de pontuação, lá onde o terminólogo não vê senão um termo, que ele associa a um elemento de uma distribuição e que ele decodifica como uma única entidade semântica:

3.12. L → a classificação alfabética / T → a classificação sistemática

O DGM privilegia a ordem alfabética para a apresentação dos artigos. Se tiver uma macroestrutura dupla, a ordem alfabética será também empregada para as subentradas, salvo se essas são dadas seguindo antes a ordem cronológica de seu aparecimento na língua. As entradas remetidas suprem igualmente o reagrupamento. O exemplo de dicionários como o Lexis ou o Robert méthodique, ou o dos dicionários para as crianças, ilustram bem que, se a ordem alfabética é um princípio maior em lexicografia, ele não é exclusivo ou obrigatório, e é possível proceder de outro modo.

O DT privilegia a ordem sistemática. Os termos são reagrupados por campo conceituai. índices alfabéticos são, entretanto, necessários para suprir esta “desordem”.

Por exemplo, o vocabulário das Appellations d’emplois dans l’industrie papetière [Apelações de empregos na indústria papeleira] quebequense é repertoriado em 15 subdomínios “que seguem a ordem lógica da fabricação do papel” (1982:6).

  1. Transporte de madeira;
  2. Lugar onde se guarda a madeira;
  3. Oficina de preparação da madeira;
  4. Oficina de massa mecânica;
  5. Oficina de massa química;
  6. Oficina de preparação da massa;
  7. Oficina de fabricação;
  8. Oficina de acabamento;
  9. Oficina de embalagem;
  10. Oficina de armazenamento e acabamento;
  11. Comércio;
  12. Laboratório
  13. Forja e usina de filtração;
  14. Empregos diversos no interior;
  15. Empregos diversos no exterior.

O Nouveau dictionnaire encyclopédique des sciences du langage funciona da mesma maneira. Os artigos são reagrupados em quatro grandes seções temáticas.

  1. As escolas;
  2. Os domínios;
  3. Os conceitos transversais;
  4. Os conceitos particulares.

Esse modelo é comum nos trabalhos de terminologia. Isto não impede que um DT classifique os dados seguindo a ordem alfabética. Assim, que o Dictionnaire de linguistique et des sciences du langage organiza as entradas seguindo a ordem alfabética.

4. Conclusão

Os elementos catalogados acima colocaram em evidência as principais convergências entre a lexicografia e a terminografia, da mesma maneira que as especificidades mais marcantes. Sem ser exaustiva, a comparação é suficiente para mostrar como a idéia de mapear as unidades lexicais domina um e outro campo de estudo. Ela é pertinente também para caracterizar cada uma das duas práticas sociais, ou dois aspectos de uma mesma prática, e para resituá-las em relação ao seu público alvo respectivo e em relação aos dicionaristas que elaboram, ora um DGM, ora um DT. Isso equivale, pois, a dizer que, além de seus elos estreitos e suas intenções individuais, essas atividades com caráter lexical requerem uma formação específica. Não se passa de uma prática à outra sem precaução e sem preparação.

Referências bibliográficas

Notas

[1] Artigo traduzido por Alda Scher Backes, do curso de Bacharelado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e revisado por Patrícia Chittoni Ramos. Esse artigo é uma versão ligeiramente modificada do texto de uma comunicação apresentada no Congresso Internacional de Políticas Lingüísticas para a América Latina, Buenos Aires (Argentina), de 26 a 29 de novembro de 1997. O texto foi publicado em francês nos anais.

[2] No original francês, a palavra é bureau [escritório] e tem todos os sentidos dados pelo autor a seguir. Em português, “escritório” tem significados bem mais limitados, não incluindo o móvel, como o autor explica a seguir (Nota de T).

[3] Termo mantido em francês, devido à ausência de correspondente em língua portuguesa, compreendendo-se como referência a nomes próprios. (Nota de T.)

Référence bibliographique

BOULANGER, Jean-Claude (2001). « Convergências e divergências entre a lexicografia e a terminografia », Terminologia e ensino de segunda língua : Canadá e Brasil, Porto Alegre (Brésil), Núcleo de Estudos Canadenses, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Associação Brasileira de Estudos Canadenses, p. 7-28. [article]